"Tenho feito minha obrigação nomeando-me, fazei vossa cortesia correspondendo-me"

Textos falantes porque exigem resposta, diálogo...O título é inspirado em "Relógios Falantes" de D. Francisco Manuel de Melo, um apólogo dialogal em que o autor coloca em discussão dois relógios de igreja: o de Chagas em Lisboa e o da vila de Belas, criticando a hipocrisia e frivolidade dos seres humanos. Fiquemos com o diálogo e ignoremos a superioridade moral, a pior das doenças, segundo Agustina. Diálogo com outros textos , outras artes que nos convocam para uma conversa que nos nomeia.

Livros lidos

As velas ardem até ao fim, Sandor Marai

" Quem sobrevive ao outro é sempre um traidor - nós dois sobrevivemos a uma mulher"
Henrick suporta o sofrimento em silêncio, mas, passados 41 anos é hora de confrontar Konrad, porém o segredo e a inviolabilidade da palavra mantêm-se. De alguma forma a amizade prevalece, só a amizade pode explicar a forma como ambos agiram.
"O que é que se pode perguntar das pessoas com palavras? O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a realidade da sua vida?… Vale pouco (…) São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o fenómeno mais raro da vida. Na altura, ainda não o sabia. Agora não me refiro aos mentirosos, aos safados. Só penso que conhecer a verdade, adquirir experiências, de nada serve, porque ninguém consegue mudar o seu carácter. Talvez não se possa fazer mais nada na vida que adaptar à realidade com inteligência e cautela essa outra realidade inalterável, o carácter pessoal. É a única coisa que podemos fazer. E mesmo assim, não seríamos mais sábios, nem mais protegidos…"
Obra sobre a natureza das relações humanas, a amizade, a traição, mas também sobre os poderes e limitações da palavra; a palavra é sempre uma aproximação, a totalidade fica para-além , no silêncio, no gesto, no corpo, na vida.

A praia de Chesil, Ian Mcewan
Um casamento não consumado - metáfora da falta de um código para dois seres comunicarem...Mantemo-nos no domínio do inefável... " O assunto encontrava-se entre eles, tão sólido como um acidente geográfico, uma montanha, um promontório. Inominável, inevitável."
" O seu casamento tinha oito horas e cada uma dessas horas pesava sobre ela, tanto mais quanto não sabia como descrever a Edward esses pensamentos"(...) "Florence pensou que percebia qual era o problema de ambos: eram demasiado bem educados, demasiado constrangidos, demasiado temerosos, andavam um à roda do outro em bicos de pés, a murmurar, a segredar, a diferir, a concordar. Mal se conheciam um ao outro, e nunca podiam fazê-lo por causa da manta de quase silêncio amigável que abafava as suas diferenças e os cegava tanto quanto os aprisionava"
Tempo da diegese: "Aquela ainda era a época - que viria a terminar mais tarde naquela famosa década - em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura." (...) "Ser infantil ainda não era respeitável , nem estava na moda" - contrariamente aos dias de hoje, diríamos...
Na conversa final, o sarcasmo em forma de aguilhão que conduz a um crescendo de crueldade, camuflagem do desespero. Procuram-se razões onde há luz, não onde elas estão, porque são inomináveis. Vertigem que destrói e liberta, manobras irreversíveis sobre o gelo fino.

A hora da estrela, Clarice Lispector



Dizer que Macabéa é a protagonista da obra é, no mínimo, um contra-senso, pois a sua forma de existir é inexistindo, ou pedindo desculpa por existir, incompetente para a vida, transparente, incorpórea.
“ Cuidai dela que meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. “
Clarice interpela-nos, exige-nos que gritemos por todas as Macabéas sem voz, que sofrem em silêncio, quer sejam nordestinas, transmontanas ou romenas…
A protagonista da obra será a própria palavra, a literatura volta-se sobre si mesma ( metaliteratura?), a linguagem é ao mesmo tempo material e objecto da ficção. O ofício de escrever, o escrever para quê e porquê é tema recorrente:
.” Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suportando mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos.”
A escrita aproxima-se da personagem: é rala, simples como ela; para captar a delicada e vaga existência de Macabéa, não serão usados “ termos suculentos”, adjectivos esplendorosos” ou “carnudos substantivos”.

“ A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo”

“ Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta” ( Cf. As velas ardem até ao fim).
Se Macabéa inexiste, Clarice desescreve e desescrevendo nos ilumina o indizível.

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